segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Delaware e o conceito de paraíso fiscal

A Lei nº 11.727, de 2008, que ampliou o conceito de paraíso fiscal, tem suscitado diversas discussões, com destaque para os efeitos sobre as "limited liability company" (LLCs) localizadas no Estado americano de Delaware, as quais teriam sido o grande alvo das mudanças. A relevância das discussões está no fato de que as operações que envolvam paraísos fiscais podem se sujeitar a um maior ônus fiscal. De fato, relevantes impactos poderão ser verificados no tocante ao controle dos preços de transferência. Não obstante, as alterações promovidas na legislação parecem não afetar a possibilidade de enquadramento das referidas empresas quando o assunto é tributação de investimentos estrangeiros.
Basicamente, as alterações promovidas envolveram a inclusão de um parágrafo ao artigo 24 da Lei nº 9.430, de 1996, bem como a introdução do artigo 24-A, os quais tratam expressamente acerca dos preços de transferência. O artigo 24 já definia paraíso fiscal como o "país que não tribute a renda ou que a tribute à alíquota máxima inferior a 20%", tendo sido acrescido o parágrafo 4º, que dispõe que também é considerado paraíso fiscal o país "cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição das pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos atribuídos a não-residentes". Já o artigo 24-A introduziu o conceito do regime fiscal privilegiado. Trata-se de conceito equivalente ao de paraíso fiscal com foco em regimes que concedam determinadas vantagens fiscais previstas no referido dispositivo.
A definição do conceito de paraísos fiscais para os demais fins, inclusive investimentos estrangeiros, está dispersa em diversos dispositivos legais, os quais podem ser divididos em dois grandes grupos: 1) aqueles dispositivos que fazem referência ao artigo 24; e 2) aqueles que tratam do tema paraíso fiscal de maneira completamente autônoma. Da simples exposição dos fatos, já podem ser extraídas duas conclusões preliminares: as disposições relativas aos paraísos fiscais relacionadas às situações previstas no item 2 acima não foram afetadas, já que são completamente independentes da norma alterada. Aqui se encontram, dentre outras, as normas relativas aos investimentos nos mercados financeiro e de capitais. Além disso, o artigo 24- A, como artigo independente do artigo 24 que é, não produz quaisquer efeitos sobre as normas que fazem referência ao artigo 24 (item 1 acima), sendo exclusivamente direcionado à matéria relativa aos preços de transferência.
Assim, a eventual influência da Lei nº 11.727 sobre os investimentos de LLCs em Delaware estaria restrita às hipóteses de rendimentos que têm sua tributação afetada pelo artigo 24 da Lei nº 9.430, como os ganhos de capital e os juros sobre o capital próprio. Nesse sentido, a questão preliminar está na abrangência do artigo 24, especificamente na possibilidade de um país de elevada carga tributária como os Estados Unidos ser considerado paraíso fiscal exclusivamente em relação às operações envolvendo uma LLC em Delaware. A resposta a essa questão é controversa e decorre da redação do próprio artigo 24, parágrafo 1º, que dispõe que deverá ser "considerada a legislação tributária do país, aplicável às pessoas físicas ou jurídicas, conforme a natureza do ente com o qual houver sido praticada a operação".
Com base no disposto, é possível entender que a referência "conforme a natureza do ente" insere um critério subjetivo na análise, permitindo a qualificação exclusivamente em relação a determinados tipos de pessoas jurídicas que estejam sujeitas a um tratamento que preencha os requisitos do artigo 24, isto é, um país poderia ser considerado paraíso fiscal apenas em relação às operações envolvendo uma entidade específica. Esse entendimento encontra eco em parcela importante da doutrina.
Por outro lado, a redação do dispositivo também permite o entendimento de que, apesar da referência expressa à natureza do ente com o qual houver sido praticada a operação, o próprio dispositivo restringe tal qualificação ao fato de se tratar de pessoa física ou jurídica, dando, assim, um caráter geral à remissão - ou seja, um país poderia ser considerado paraíso fiscal apenas com base nas regras aplicáveis à generalidade das pessoas jurídicas ou físicas, sem considerar situações específicas. A favor dessa última interpretação está o fato de que o caráter geral contribui de maneira bastante relevante para a eficácia da norma, em função não só da facilidade de aplicação pelos contribuintes mas também de fiscalização pelas autoridades. Esse parece ser o enfoque adotado pelas próprias autoridades fiscais brasileiras na edição de lista taxativa das jurisdições consideradas paraísos fiscais, a qual inclui uma única exceção à referida interpretação - Luxemburgo, em relação às holdings da legislação de 1929 -, a despeito dos inúmeros benefícios relacionados a critérios subjetivos encontrados em diversas jurisdições não contempladas na lista. Outra evidência da adoção dessa interpretação seria a própria introdução do artigo 24 -A para fins de controle dos preços de transferência, que dispõe sobre critérios de enquadramento que já estariam previstos no artigo 24 com base no outro entendimento e que, historicamente, nunca foram considerados pelas autoridades.
De qualquer forma, ainda que se adote a interpretação mais ampla, no sentido de que a qualificação de um país como paraíso fiscal pode se basear em circunstâncias especificamente aplicáveis a determinado ente, a introdução, pela Lei nº 11.727, de um critério adicional para a identificação de paraísos fiscais, consistente no sigilo de informações societárias, em nada altera a possibilidade de qualificação das LLCs em Delaware. Afinal, é notório que uma de suas principais características é o fato de serem fiscalmente transparentes, isto é, não há tributação sobre a sua renda, o que daria margem ao enquadramento no rol de países com tributação favorecida com base na redação original do dispositivo.
Dessa forma, é possível verificar que, apesar dos relevantes reflexos que poderão ser verificados no âmbito dos preços de transferência, a introdução da Lei nº 11.727 em nada inovou quando o assunto é investimento de LLCs localizadas em Delaware.

Autor: Paulo Bento (advogado)
Fonte: Valor Econômico

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